*Cristiano Castilho, 13/01/2012
Coloco ruído/mm para escrever sobre ruído/mm. Introdução à Cortina do Sótão começa delicado. O piano melancólico é como um afago na cabeça, ainda que intermitente. E também a chavinha que dá a partida para essa viagem de seis músicas, carregadas de brumas e dor, tensão e alívio. O álbum é um dos melhores discos de 2011. Foi citado em diversas listas nacionais. E comentado, destrinchado, digerido.
Formado atualmente por André Ramiro (guitarra), Ricardo Pill (guitarra), Giovani Farina (bateria), Alexandre Liblik (piano) e Rafael Panke (baixo), o ruído/mm tem quase dez anos de história. Passou por diversas formações. Lançou seu primeiro disco, o EP Série Cinza, em 2003.
Na longa e divertida entrevista a seguir, a banda curitibana demonstra um impressionante domínio sobre o “fazer artístico”. Falam também sobre o processo criativo do quinteto, que envolve esquimós e Edgar Alan Poe; contam como receberam as boas críticas; e divagam sobre Curitiba, cidade essa que, como o pós-rock, vive entre luz e sombras.
“O artista não pode se fechar na torre de cristal e achar que cada ideia que produz é brilhante, nem pode ficar sempre copiando os outros por falta de assunto e querendo agradar.”
O que estão ouvindo nesse exato momento?
Ramiro: Sleep Party People e Sonic Youth (Bad Moon Rise), ao mesmo tempo e aleatório, rs.
Panke: Shuffle on! Mas o Last.fm denuncia: Neutral Milk Hotel, Swervedriver, My Midi Valentine e Akron/Family.
Liblik: Ando ouvindo os pilares do jazz boliviano (uma gravação histórica que resgatei em La Paz) e Hierofante Púrpura, banda doidona que lançou um belo disco neste ano.
Introdução à Cortina do Sótão está em diversas listas de melhores discos de 2011 – inclusive na deste blog. Por que ele foi o grande álbum do ruído/mm?
Ramiro: Porque existe uma sincronicidade beirando a exaustão por coisas sinceras no mundo da música.
Liblik: Sincronicidade é a palavra. São cinco melhores amigos que se acharam, mas que sempre estiveram se procurando.
Vi que vocês comemoraram muito essas boas notícias. Qual era a expectativa da banda na época do lançamento do álbum
Panke: Havia uma certa insegurança devido ao relativo sucesso do disco anterior, A Praia. Estávamos nos enveredando por caminhos diferentes, e a comparação seria inevitável. Como isso seria percebido pelos outros? E, em geral, quando se lança um disco não se faz a menor ideia de como ele será recebido; perde-se o distanciamento da obra durante o processo, fica difícil apreciá-la objetivamente. Além disso, o reconhecimento de um trabalho depende de n fatores não relacionados à música em si... há discos bons que não nunca chegam aos ouvidos certos, há tanta porcaria que ganha destaque. Aprende-se a não esperar nada: assim, quando surgem opiniões favoráveis, é uma festa.
Ramiro: Não temos expectativas para muitas coisas. ruído é lado B da vida. É a cor do nosso sangue. Quando alguém diz que gosta do disco, acaba sendo um prazer conhecer esta pessoa, porque alguma coisa está nos fazendo convergir para o mesmo canal. Isso é bom demais.
Liblik: A alegria de fazer música compartilhando com nossos amigos é a nossa expectativa realizada. É isto que comemoramos.
Vocês sabiam que tinham um grande material nas mãos?
Ramiro: O material mais valioso é encontrar os moleques e fazer rock. Se, ao final de um ensaio ou na construção de uma nova música, saímos, bebemos e curtimos juntos, quer dizer que estamos no caminho certo. O ruído/mm é um consenso complicadíssimo, pesado, exaustivo, denso, mas antes de tudo, prazeroso. Somos metódicos e temos muitas referências. É uma loucura coletiva, sem dúvidas. Bom, o disco é mais simples que a Praia. Acho que isso ajuda na percepção das pessoas.
Panke: É engraçado, porque sempre nos envolvemos tanto com o que fazemos que acabamos desenvolvendo nosso próprio misticismo em torno da criação/criatura. De repente ela se levanta (“it’s alive!”) e percebemos que criamos nosso pequeno Frankenstein, e que o amaríamos como a um filho e reconheceríamos seu valor intrínseco, mesmo se a “opinião pública” não corroborasse esse sentimento.
Liblik: Uma coisa que eu e o Pill concordamos, é que o que importa é a Obra. Houve esmero da nossa parte sim, mas não estávamos preparando um produto para o mercado fonográfico. Estávamos fazendo a nossa história. O nosso vir-a-ser. Se é o material é bom ou ruim, é outra história - a “opinião pública”, como disse o Panke, ou doxa (δόξα), como diriam os gregos, o dirá. Mas a simplicidade à qual o Ramiro alude é mais difícil do que parece, pois não tencionamos um disco fácil, mas sim um que pudesse expressar o bom momento nas nossas vidas pessoais. Curiosamente ele saiu "bonito".
Em relação ao disco A Praia (2008), há uma predileção pelos arranjos melodiosos – há menos barulho, se formos simplificar – muito por conta do piano do Alexandre Liblik. Isso aconteceu naturalmente, a banda tinha essa intenção?
Ramiro: Acho que diminuir o noise foi uma consequência, afinal hoje temos apenas um índio eletrônico na banda. O João XXIII e eu conseguíamos gerar um background com mais força. Hoje as coisas estão mais audíveis, mas ainda tenho a oportunidade de gerar ruídos que preenchem os espaços. O Pill também tem entrado na tendência e isso é muito bom. O piano é o elemento classudo e precisa de silêncio, precisa de espaço, de pausa, de sentimento. Então, as "camas de barulho" muitas vezes são mais sorrateiras, beirando às sombras, mas estão sempre lá. E quando o piano entra, sinto um conforto enorme porque o Liblik toca muito. Mas o próximo disco vai ser Série Ramones, hehe
Liblik: Apesar do piano, é mais do que nunca um disco do ruído/mm. O caos organizado é a essência do que tentamos fazer ao vivo, por exemplo. Mas eu vivo falando pra molecada que só ouve noise: às vezes, a melhor música é o silêncio. O piano pode ser um catalisador destes extremos, mas ele é só mais um nisto tudo.
Fora a espécie de vinheta de abertura do disco ("Ciclotimia"), as outras cinco músicas são longas. Emulando o que há de melhor no pós-rock, podem ser entendidas como narrativas, já que suscitam paisagens e sensações. Isso para o ouvinte. Como é esse processo para vocês e como surgem as músicas do ruído/mm?
Ramiro: Usamos uma linha de tempo imaginária, mas não existe um enredo. Começamos com um riff que lembra um western de Sergio Leone. De repente alguém inventa um ska dos anos 60. Em um ensaio de ócio produtivo entramos em um trem beat, sentamos ao lado de Kerouac e tomamos uns tragos. É mais ou menos assim.
Liblik: A música do ruído/mm não tem a intenção (ou a pretensão) de ser programática. Mas ela é intencionalmente sinestésica. Descrever o processo de trabalho vai parecer insano (por exemplo neguinho fazendo uma base de guitarra enquanto conta uma lenda sobre os esquimós que oferecem as suas esposas aos visitantes). O que posso dizer é que há estudo por detrás destes conceitos. Por detrás do conceito simples e aconchegante do sotão, por exemplo, existe uma referência bachelardiana de um, uma pitada de Poe do outro - a música vai acontecendo coletivamente até que ela gere algum tipo de epifania. Uma forma de gestalt.
Há boas bandas de pós-rock no Brasil, muitas delas radicadas em São Paulo, e selos que apostam no gênero, como o Dissenso e o Sinewave. Apesar de ser um gênero restrito, complexo, o momento é bom mesmo?
Panke: Julgando pelas listas que saíram no final do ano, a onda está realmente boa nessa praia. Longwave na cabeça!
Ramiro: Estamos em um momento interessante no mundo da música brasileira. Há várias bandas instrumentais, pós-rock e outros gêneros, mas com referências bem diferentes, em destaque. Labirinto, Herod Layne, S.O.M.A., Constantina... enfim, cada uma com sua estratégia musical. Ainda bem.
Liblik: Não temos problemas com o rótulo - somos amigos e fãs de algumas destas bandas que o Ramiro citou. Mas sinceramente, vejo mais afinidade do ruído/mm com bandas que cantam, como o Mercury Rev ou o Sonic Youth, para citar os medalhões, do que com bandas instrumentais. Por outro lado, sofremos com excessos de palavras no mundo. Vide o Twitter! A música te convida à reflexão. As palavras esvaziam os sentimentos, quando em excesso.
O primeiro registro da banda foi EP Série Cinza, de 2003. O que mudou no ruído/mm nestes quase dez anos?
Ramiro: Tudo e nada. Mudaram as pessoas, mas cada essência ficou na banda. O ruído/mm começou nas cinzas, descansou na praia e hoje subiu ao sótão. Amanhã, quem sabe visite o cosmos.
Liblik: Aliás, o final do disco sugere uma abdução do mundo pela técnica... a vida é este vir-a-ser dinâmico. Novos discos virão e eles serão diferentes - talvez já chipados pelos alienígenas.
Panke: O disco virá voando.
André Ramiro mora no Rio de Janeiro. Como lidam com isso? Como ficam os ensaios, por exemplo?
Panke: Nós quatro mantemos ensaios regulares durante a semana, e quando o Ramiro vem para a cidade, alinhamos o quinteto. Aprendemos a aproveitar o tempo. Em outra entrevista, eu disse que estamos até mais produtivos desde que tivemos que começar a lidar com a distância. A falta dá fissura, haha, aí acabamos conversando todo dia pela Internet, elaborando planos maquiavélicos e estratagemas continentais. Chegamos mesmo a bolar um esquema de composição online, para compartilharmos novos temas e complementarmos as ideias uns dos outros.
Ramiro: Dá trabalho, mas é que eu gosto do Rio, hahaha.
Liblik: Com o Ramiro lá, temos um chato a menos pra dar pitaco nos ensaios... haha. Mas o cara faz uma falta na hora da cerveja...
Há um documentário sobre o lançamento do disco prestes a ser lançado, certo?
Ramiro: Sim, um trabalho fantástico produzido pelo Vitor Moraes em parceria com o André Senna e Tomás Van Der Osten. Um curta/documentário do concerto na Casinha, no qual lançamos o Introdução à Cortina do Sótão. Uma obra bacana, com a estética ruidosa e que captou a energia do público e da banda. No cenário tivemos algumas projeções das Prismáticas e a captação do áudio ficou por conta do Carlos Zubek. O filme vai sair em breve! É só ficar ligado no site do ruído/mm ou na nossa página no Facebook.
Liblik: Será o primeiro vídeo oficial após o disco. E os moleques produziram um video foda. Ficamos emocionados.
Panke: Deveras. Os caras têm um senso estético impressionante e fizeram muito com muito pouco.
O que mudou na – olha a palavrinha aí – cena musical curitibana nesse tempo, e o que pode ser feito para que outras bandas daqui ganhem mais repercussão?
Ramiro: Curitiba está cada vez melhor, mas bato na mesma tecla: falta produção (não apenas produtores, mas verba e lugar para produzir as coisas). Tem bastante gente empenhada e isso já é muito bom. Para profissionalizar, tem que investir, e tenho certeza que o povo está correndo atrás, mas não é fácil. O certo mesmo é continuar tentando. O modelo ideal de Curitiba seria um em que nenhuma banda local tocasse fora da cidade, mas com a prefeitura bancando muito tudo o que rola: grandes festivais (só com bandas locais e grupos expressivos internacionais). Assim, para assistir um show de um grupo curitibano, as pessoas teriam que ir até eles. Não é se fechar, mas criar um novo conceito. Fazer as pessoas irem para Curitiba passar um final de semana porque na rua ela respiraria música de qualidade. Compraria instrumentos e discos raros na rua. Teríamos mini-festivais em parques todos os finais de semana. As casas noturnas fariam shows todas as sextas e sábados. Equipamento classudo, essas coisas. Motivaria a noite, o dia, a manhã, o comércio, o humor, a alma do curitibano. Ops, acordei. hehe
Liblik: Anoto uma pequena discordância com o Ramiro. O que ele diz é certo, mas está faltando um pouco mais de auto-estima e de curiosidade. Não basta a molecada juntar os amigos e fazer barulho. Atitude tem o seu valor, mas é preciso aprofundar os conteúdos. O artista não pode se fechar na torre de cristal e achar que cada ideia que produz é brilhante, nem pode ficar sempre copiando os outros por falta de assunto e querendo agradar. Desejaria ver uma geração que esteja de fato construindo e compartilhando uma nova identidade cultural curitibana. Ler mais, ouvir mais, compartilhar mais. Os amigos, as pessoas, o mundo ao redor tem que se sentir captados por esta energia local, delirantemente nossa. Tivemos um embrião de identidade cultural com a literatura: Leminski, João Paulo Paes, Trevisan... Houve intercâmbio. Houve auto-estima. Houve estudo. Já na música, neguinho conhece 10 bandas do ano e acha que sabe tudo de música. Leu um livro do Cortázar e já domina a literatura... Menos hype e mais conteúdo, gente.
Panke: A questão da profissionalização é complicada, porque precisa haver capital rodando no meio musical. Hoje em dia as bandas têm nos shows sua principal fonte de renda, mas shows não dão tanto retorno para os bares quanto essas baladinhas fake-id, logo o ciclo é quebrado já no começo. Na época do Delta Cockers eu discotecava bastante por aí e dava pra ver bem a diferença. Para uma apresentação ao vivo soar boa, além da competência dos músicos é preciso ter boa estrutura na casa, o que demanda investimento, etc, etc, aquela velha ladainha. Mas voltando para o manual prático de como buscar repercussão na mídia: é preciso muito trabalho não musical. Em geral temos ótimas bandas que não sabem o que fazer com o material depois de pronto. Quando se termina de gravar um disco, o trampo está apenas começando. Músico tem que ser designer, webmaster, jornalista, assessor, vendedor, booker, RP... ou conseguir montar uma equipe com amigos muito brothers, porque o dinheiro é escasso. Tem que divulgar, e muito. Tem que mandar pra dEUS e o mundo: de cada 100 discos enviados, rolará uns cinco, dez, feedbacks. Há muito material por aí, é difícil convencer alguém a prestar atenção ao seu trabalho. Qualidade não garante reconhecimento, mas a falta dela garante ostracismo. E claro, há o fator acaso, a loteria junguiana, as zebras virais.
O pós-rock tem a cara de Curitiba, muitas vezes, principalmente no inverno. Que acham disso?
Ramiro: Perfeito, hehe
Panke: Eu olho pela janela e vejo um robô gigante tirando os prédios do lugar.
Quem/ qual é o público do ruído/mm?
Ramiro: De acordo com o Pill, ruído/mm é parabólica de maluco, hahaha. Mas até minha mãe curtiu.
Liblik: Os pais dos amigos têm gostado do disco.
Panke: Pro moção e pra mocinha, para jovens de 8 a 80 anos.
De qual barulho a banda mais gosta?
Ramiro: A banda? Acho que o barulho do efeito bolha, quando estamos os cinco dentro da nave e as coisas explodem, arrepia, você mal consegue falar depois de tocar. Quem provou o efeito bolha sabe do que estou falando.
Panke: Pode crer.
Liblik: Sincronicidade junguiana. Cada ruído acontece no seu momento certo. Repito: é epifânico.
Se em 2012 o mundo realmente acabar, que disco gostariam de ouvir pela última vez?
Ramiro: Silver Jews - Natural Bridge.
Panke: Flotation Toy Warning - Bluffer's Guide to the Flight Deck.
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