quarta-feira, 4 de abril de 2012

Mutantes [1969]



Por Mauro Ribeiro e Raul Branco

O álbum “Mutantes” foi lançado no ano de 1969 e é, cronologicamente, o segundo Lp da banda e o primeiro em que cortaram o artigo do próprio nome. Antes dele, após o contrato com a gravadora Phillips, os Mutantes haviam acompanhado, em 1967, o disco “Gilberto Gil”, do artista tropicalista - cuja capa é claramente influenciado no “Sgt. Pepper’s.Lonely Hearts Club Band” dos Beatles - e, no ano seguinte, conseguiram lançar seu disco de estréia, chamado simplesmente “Os Mutantes”. Agora, final de 1968, um ano particularmente tumultuado politicamente sobre a opressão do governo militar, a música brasileira nunca esteve, em contrapartida, tão rica, tão participante, tão em sincronia com seu tempo e seu povo. Jovens e inconseqüentes, Rita, Arnaldo e Sérgio se divertiam contestando a norma, com uma fome para explorar, musicalmente, formas diferentes de se expressar. Em uma indústria ainda ancorada em muzak, com arranjos para titia nenhuma botar defeito, o rock tupiniquim não conseguia ver além do Iê-iê-iê que lhe deu vida e inspiração inicial.

Isto acaba aqui, neste disco. O álbum “Mutantes”, gravado em apenas uma semana e meia no final de 1968, está a anos luz de qualquer outro disco lançado no Brasil até então. Seu trabalho continua influenciado, mais do que nunca, pelos Beatles, mas não naquele grupo que cantava “She Loves You”, e sim nos Beatles experimentais, que ousavam quebrar barreiras e, através do que havia de mais novo na tecnologia, criar novas formas de deturpar o som “normal”, criando uma assinatura própria.

O álbum começa com um excelente arranjo do maestro Rogério Duprat para uma pequena passagem inspirada na ópera "Aida", de Verdi, que serve de introdução para a primeira faixa, "Dom Quixote", que é tida como a primeira composição da dupla Rita/Arnaldo. Todavia, embora não creditada, há nela uma forte participação de César Baptista, pai de Arnaldo e Sérgio. Parte da letra teve infelizmente que ser retirada por não passar no crivo da Censura Federal. Com o humor que sempre caracterizou os trabalhos da banda, os Mutantes deslocam o famoso personagem de Cervantes para o Brasil de 68, concluindo que ele, inevitavelmente, terminaria no programa do Chacrinha. Entre buzinadas e gritos de “Terezinha...! Uh! Uh!”, ouvimos uma citação de “Disparada” (Geraldo Vandré/Theo de Barros), encerrando a zona com gostosas e debochadas gargalhadas.

A música seguinte, “Não Vá Se Perder Por Aí” (Raphael Thadeu Vilardi da Silva/Roberto Lafayete Loyola), começa duas vezes, como se tivessem errado, com Rita vocalizando como uma personagem de desenho animado. Apesar de ser uma canção country, com rabeca e tudo mais, sua guitarra é distorcida, num registro muito utilizado por Sérgio nesse período. E em se falando em Beatles, o violão e a bateria são totalmente espelhados nos estilos de John Lennon e Ringo Starr. A letra, aparentemente confusa e engraçada, permite uma crítica aos jovens “normais”. Destaque também para o solo de violino, que contrasta maravilhosamente com a guitarra.

Em “Dia 36” (Johnny Dandurand/Mutantes), Serginho toca uma guitarra com pedal wah-wah (batizada, na gozação, de pedal wooh-wooh) especialmente desenvolvido pelo irmão mais velho, Claudio Baptista, o mago eletrônico dos Mutantes, que envenenara todas as guitarras de seu irmão caçula e construíra seus amplificadores. O efeito oferece uma guitarra arrastada em tons graves, que somado à voz distante, porém densa, de Arnaldo cantando versos aparentemente desconexos e psicodélicos, pode trazer arrepios para pessoas impressionáveis. A voz foi gravada através de uma caixa Leslie embutida no órgão, mesmo truque utilizado pelos Beatles em "Tomorrow Never Knows". A rotação da fita foi gravada fora da velocidade padrão, dando o clima grave e soturno que torna esta faixa um dos laboratórios musicais mais interessantes feitos no rock nacional.

“Dois Mil e Um” (Rita Lee/Tom Zé), nasce de um poema de outro monstro sagrado do Tropicalismo, Tom Zé, chamado “Astronautas da Liberdade”. Depois dessa letra passar pelas mãos de Gil e Caetano, nenhum dos dois conseguindo criar uma música que agradasse ao poeta, foi entregue secretamente para Rita Lee. Foi dela a idéia de pegar esse poema que fala da liberdade em uma viagem pelas galáxias e aplicar uma viola e sotaque caipira, contrastando com um refrão bem roqueiro com instrumentos elétricos. Ela também tomou a liberdade de rebatizá-la de “Dois Mil e Um”, em homenagem ao filme recém lançado “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Para esta faixa, contrataram para gravar a primeira parte a dupla caipira Rancho & Mariazinha, respectivamente na viola e sanfona. A canção ainda iria estrear o uso de um instrumento praticamente desconhecido no Brasil, o theremin. Basicamente ele é uma caixa com dois osciladores de alta freqüência, cujas antenas reagem à aproximação da mão humana criando, de acordo com seu posicionamento, sons agudos ou graves e de volume variado. Os Mutantes levariam com sucesso esta música para disputar o IV Festival da Canção, da TV Record; como é de imaginar, o theremin oferecendo grande apelo cênico e deixando o público boquiaberto com a “mágica”. O instrumento já fora usado antes no rock pelos Beach Boys em “Good Vibrations”, de 1967, porém a maioria dos roqueiros só passaram a conhecer o instrumento com Jimmy Page e o Led Zeppelin no filme "Rock É Rock Mesmo".

A faixa que se segue trouxe uma forte controvérsia. “Algo Mais” (Rita/Arnaldo/Sérgio) fora composta por encomenda para um anúncio da Shell. Por ser concebida como um jingle, desabou sobre ela um estigma de inferioridade por parte do público e da crítica. A banda, porém, deu a ela um tratamento de igual qualidade às outras canções e não sentiram o menor desconforto em colocá-la dentro do álbum.

“Fuga Nº II” (Rita/Arnaldo/Sérgio), uma canção gravada na primavera de 68, também foi levada a disputar um festival, o FIC - Festival Internacional da Canção, daquele ano. A canção é uma espécie de continuação de "She's Leaving Home" dos Beatles. A canção de Lennon-McCartney é uma narrativa, na terceira pessoa, sobre uma menina fugindo de casa. "Fuga Nº II " conta a aventura do ponto de vista da menina. Em sua letra aparentemente simplista esconde a mensagem sublinhar de que esta geração devia deixar de lado a estrutura montada pela geração reinante e criar seus próprios caminhos. Talvez uma das mais doces e populares peças em toda a carreira do grupo, ela fechava o primeiro lado do Lp, abrindo seu espaço com ruídos de vento e uma harpa surgindo etérea e que teria, para encerrá-la, um acorde final sustentado por 20 segundos, outra referência/reverência a “A Day In The Life”, dos Beatles, que tem um acorde de piano sustentado pelo tempo recorde de 42 segundos.

Virando o vinil, os Mutantes relembram o mega sucesso dos primórdios do rock no Brasil, “Banho de Lua”, eternizada na versão de Celly Campello. A música recebe todo um tratamento à la Mutantes, com doses iguais de peso e lirismo, principalmente graças à ótima interpretação de Rita.

A seguir, temos “Ritta Lee” (Rita/Arnaldo/Sérgio); essa grafia - que foi abandonada no CD - leva dois "t" porque Rita, na época, usava seu nome assim, o que você pode conferir se tiver o velho vinil. O tema, com Arnaldo e Sérgio cantando as qualidades da colega, tem em seu piano, que começa boogie-woogie, um jeitão de "Martha My Dear" e "Obla-di, Obla-da". Embora as influências dos Beatles sejam facilmente percebidas, são claramente assimiladas e reinterpretadas: a isto, por definição, chamamos mutação.

Quase fechando o disco, os Mutantes oferecem mais uma música com alta dosagem de psicodelismo. “Mágica” (Rita/Arnaldo/Sérgio), com a risada clara de Rita, os acordes dedilhados de violão, a linha pesada de baixo e os efeitos diversos de guitarra distorcida e cítara, abrilhantados por um clima que agradaria a qualquer Harry Potter. Inserida no final da canção, há uma pequena citação de “Satisfaction”, dos Rolling Stones.

Tom Zé, com o sucesso conseguido com “Dois Mil e Um”, sentiu segurança em oferecer outro poema à banda, “Qualquer Bobagem”, musicada pelo trio. Para seu arranjo, Rogério Duprat incluiu um trompete, herança de Bach filtrada por George Martin para os Beatles, como o piccollo em “Penny Lane”. Ela é cantada meio como “My Generation” do The Who, com Arnaldo gaguejando os versos, como que meio intimidado. Essa música viria a ser regravada com sucesso pelo Pato Fu e, para quem não conhece a gravação original, pode se assustar ao constatar como a versão dos Mutantes consegue ser mais louca, apesar de ter sido feita mais de 30 anos antes.

O álbum termina com outra peça que se tornaria clássica no repertório dos Mutantes, “Caminhante Noturno” (Rita/Arnaldo/Sérgio), música de meados de 68, que disputava festivais de canção, deixando os teatros lotados perplexos, sem entender direito o que estava acontecendo, por estarem acostumados a ouvir apenas samba e bossa-nova . A canção termina com uma salada mista de referências épicas onde se inclui o trio cantando, em inglês, “Everybody’s got one, everybody’s got one”, uma última reverência aos Beatles no álbum, que canta este mesmo raga em “I Am The Walrus”; o famoso e futuríistico robô de “Perdidos no Espaço” gritando “Perigo! Perigo! Estamos em rota de colisão!”; uma voz quase mecânica, homenageando outro ícone do Tropicalismo, Caetano Veloso, repetindo “...é proibido proibir”, e uma gravação do público na arquibancada do Maracanãzinho ao coro de “Bicha! Bicha!”, registrado em meio à cerrada disputa do Festival Internacional da Canção do ano anterior.

Um salto quântico em concepção de capa de disco, a idéia original era mostrar o trio como alienígenas de cabeças enormes e sem pêlos ou cabelos, veias saltadas, orelhas pontudas e mãos com seis dedos. No final, preferiu-se fixar a imagem da banda como o povo a conhecia pela televisão, no FIC. Assim, a foto da capa traz o grupo em plena apresentação no Festival, com Rita Lee fantasiada de Noiva, Arnaldo Baptista de Príncipe e Sérgio Dias de Toureiro. Os alienígenas, porém, não foram postos de lado e sua foto acabou por compor a contra-capa. Com isso, o grupo que iria influenciar gerações de roqueiros brasileiros, conseguiu mostrar duas de suas inúmera facetas de uma só vez.

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