sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Som: entre a fidelidade e a nostalgia

Por Eduardo Pinheiro
publicado em 30 de janeiro 2013 no Papo de Homem

Você com certeza já se deparou com aquele defensor do vinil, dos amplificadores valvulados, com aquele crítico do som digital, mas será que é assim mesmo? Qual o fundamento para a preferência de um ou outro formato? Qual é objetivamente melhor?
Jack White é um defensor do vinil. Mas isso é por conta do tipo de música que ele ouve e a maneira com que ele veio a conhecer esse tipo de som. Abaixo, explico melhor
A segunda lei da termodinâmica simplesmente impede que haja um dia reprodução verdadeiramente 100% fiel de um som. Além disso, filosoficamente falando, um som não é só uma mistura de vibrações, substâncias, reflexos e impactos. Também não é só a posição de nossa cabeça no mundo, e os vários fatores do ambiente físico; as fontes de som importam, mas ouvir ocorre em contexto, é um ato interpretativo, portanto exige participação e engajamento e, assim, também varia muito.

O aspecto mais importante da criação e reprodução, principalmente de música é que este é, desde o princípio, um processo artificial. Esse é um ponto importante, porque isso muitas vezes é esquecido, mas lembrar disso nos ajuda a desbaratar boa parte das confusões com relação ao que é melhor em termos de som. Em outras palavras, existe uma diferença entre fidelidade, que é reproduzir o som o mais próximo possível do que ele foi produzido, e o que efetivamente “soa melhor” para nós.

Muitas vezes não estamos em busca de fidelidade, e não há nenhum problema com isso.

Por exemplo, as pessoas que preferem o vinil louvam suas qualidades orgânicas e, em particular, como os graves são envolventes. Isto é totalmente verdade. No entanto, o som digital, como ele é registrado num CD, por exemplo, é efetivamente mais fiel (isso pode ser fisicamente medido).

Os graves envolventes do vinil são resultado de distorções eletromecânicas: e aí que está, o tal grave envolvente é um “artefato” introduzido pelo modo de reprodução, ele não é fiel a música que é produzida normalmente (a não ser que ela seja produzida de forma a exatamente imitar esse artefato). Porém, o que ocorre é que os artefatos digitais existem e, embora sejam mais sutis, nós, ao longo do tempo (e também pela questão de hoje ser mais incomum) criamos uma relação emocional com os artefatos do vinil.

Então o vinil tem um som diferente, menos fiel, com mais artefatos (além da distorção nos graves, os estalidos, e muitos outros tipos), mas que pode nos soar melhor por uma série de razões. E, de fato, podemos argumentar que certas músicas, particularmente as antigas, foram pensadas para serem ouvidas nesse meio – e que, portanto, existe uma “fidelidade” no sentido de ouvirmos como era ouvido no passado.
Link YouTube | Entendeu agora a graça do cara? As canções antigas que ele tanto preza soam melhor em seu contexto

Sem dúvida, para um purista, ouvir Charlie Patton no Youtube não faz juz aos cilindros de metal em que suas músicas foram gravadas, algumas delas recuperadas como forro de um galinheiro. Quem tem oportunidade de ouvir uma bolacha 78 de Skip James em um gramofone, como no filme Ghost World, por favor o faça.

No entanto, é preciso frisar, embora o som digital, mesmo nas taxas de amostragem de um CD (taxas estabelecidas numa era em que a computação caseira era milhares ou milhões de vezes menos potente do que hoje), é mais fiel. Se gravamos um mesmo instrumento, num mesmo recinto e com as mesmas características, num dispositivo analógico e num digital, e medimos os resultados, isso se tornará claro.

Poderia ser argumentado que nos testes cegos de audição, pode haver uma tendência para o vinil: mas tal teste só seria possível com alguém que não foi de nenhuma forma acostumado com nenhum dos formatos. Ou, talvez, com o som de um vinil gravado no CD: se não houver uma tendência, ainda assim, para o vinil, estará provado que o CD é mais fiel.

Mas só isso: que é mais fiel. E parece sensato, fisicamente falando, pensar que é mais fiel.

Porém, nem só de taxas de amostragem e espectros de frequência vive o som digital: é fato que os primórdios da internet trouxeram à tona a compressão de áudio com perda, através da psicoacústica.

Sim, estou falando do MP3, que ainda é o som que você vai encontrar na maioria dos serviços de streaming, como o Youtube ou o Rdio, bem como na vasta maioria do material pirateado que pode ser encontrado na rede.

O MP3 é um saco de gatos. No geral, se você puder evitar e conseguir um arquivo em FLAC (um modo de compressão sem perda), isso é o melhor. Se um MP3 vai resultar em uma boa audição ou não, isso vai depender de vários fatores, o principal deles, sua capacidade de ouvir e interpretar som.

De modo geral, mesmo os mais bem feitos MP3, com grande bitrate, na faixa de 320 não variável, possuem um pouco menos do que em áudio se chama “espaço aural”. Em outras palavras, o principal artefato do MP3 é efetivamente retirar do som aspectos “espaciais” dele que, a bem dizer, para a maioria das pessoas, são imperceptíveis.

Afinal, muita gente ouve música pensando e prestando atenção em muita coisa, menos na música

O MP3 foi, de fato, desenvolvido tendo em mente que certas coisas nunca vão ser ouvidas ou percebidas por certas pessoas. Assim, a não ser que você treine seus ouvidos de audiófilo, um MP3 de boa qualidade, em geral, não vai ser muito distinguível de um FLAC ou outro padrão de som digital sem perda por compressão (CD, Apple Lossless, etc). Também vai depender muito da música sendo comprimida: quaisquer sons que contenham estruturas muito aleatórias, tais como chuva, os pratos e muitos outros instrumentos percussivos são particularmente distorcidos nos formatos comprimidos tais como o MP3.

Além de os engenheiros deliberadamente alterarem o som para ele ficar digitalmente menor e mais fácil de transitar pela Internet discada de mais ou menos 1996, e usarem noções subjetivas tais como a psicoacústica para fazer essas alterações, as pessoas que geraram esses MP3 a partir de seus CDs e outras fontes, na maior parte dos casos, não eram engenheiros de som.

Elas usaram softwares diversificados, alguns muito bons e seguindo especificações de engenheiros, outros feitos nas coxas, e ao usar esses softwares para converter seus CDs, o fizeram com diversas capacidades de configuração e entendimento do que estavam fazendo. Daí elas distribuíram para a internet, e muito desse conteúdo permanece circulando na Internet desde a década de 90.

Portanto, se você baixa um MP3 (ou ouve no Youtube e outros serviços), é provável que ele seja de baixa qualidade, ou que, pelo menos, ele podia ser melhor. Ainda assim, você hoje acha a maioria das coisas também em FLAC, até mesmo algumas vezes gravadas de vinil.

Outro âmbito em que há discussão com relação ao som é no de amplificadores valvulados. Os sistemas de som geralmente reconhecidos como tendo melhor qualidade são os valvulados. Novamente, estritamente falando, entre o estado sólido e a válvula, há diferenças, mas essas têm menos a ver com fidelidade do que com preferência por diferentes artefatos ou distorções.

As válvulas, em geral, quando bem construídas (e bem caras, requerendo bem mais manutenção, em todos os casos, do que os equipamentos sem elas), produzem distorções mais harmônicas. Reitero novamente que boa parte do que achamos “bom” no som é com base em artefatos e não em fidelidade: no caso em geral, preferimos a distorção das válvulas, que também é um artefato.

Embora os dispositivos de estado sólido (transístores, circuitos integrados) tendam a ter uma distorção mais aleatória, e, portanto, menos harmônica e menos atraente enquanto artefato para a maioria de nós, eles (numa relação preço/qualidade com as válvulas) tendem a ter menos distorção geral. Menos artefatos, mais fidelidade.

O problema maior é que os dispositivos valvulados atuais raramente vão ser completamente valvulados, então você provavelmente vai encontrar os dois tipos de artefatos, de eletrônica convencional, e a de tubos. Ás vezes, em muitos casos dá para dizer, até o terceiro artefato estará envolvido: fontes digitais, ou alguma parte do circuito operando por conversão digital. Todos os artefatos possíveis presentes. Isso não quer dizer que o som necessariamente acabe ruim.

Como estamos falando de grana preta, todos esses sons são bons. O difícil mesmo é quando você tem um orçamento e precisa pesar objetivamente qual o melhor equipamento que você pode comprar: aí, meu amigo, você vai ter que fazer um doutorado em engenharia elétrica e outro em engenharia de som, fazer muita pesquisa, e talvez também meditar muito para se livrar de ideologias, apegos, marcas, publicidade, símbolos de status, e assim por diante.

Sem falar que se você entrar nessa, você vai ter que começar a pensar em coisas como alterações de materiais no seu ambiente, ângulos de caixas de som, equalizações por canal, aparelhos caros para medir os reflexos nas diversas faixas de frequência em cada ponto do recinto, qualidade das caixas, e assim por diante. Ou, para escapar desta parte, usar sempre apenas bons fones de ouvido.

Não reclame do seu celular. Ele faz muito mais que qualquer tecnologia imaginada há 25 anos

De fato, o irônico é que qualquer dispositivo (tipo o seu smartphone) com um bom fone de ouvido, tocando um formato sem perda, vai lhe dar uma qualidade de som quase inimaginável de tão cara na década de 80 (Apenas atente: o Android a partir da versão 3.2 tem o FLAC como formato nativo – todos os players tocam, o iPhone só vai tocar o Apple Lossless, bem mais difícil de encontrar em versão pirata. Mas você sempre pode pagar: se quiser além de tudo não poder copiar sua música para seus amigos). Se me lembro dos primeiros equipamentos de som onde ouvi Led Zeppelin, é possível que eu chore. O hiss (ruído branco na faixa dos agudos) era tão alto num volume relativamente baixo que era impossível dormir com o som ligado, sem música tocando.

Ainda assim, quando esquecia as imperfeições e não comparava com o som dos meus amigos ricos, estava tudo muito bem. Mas muitas vezes quando estou ouvindo música no meu notebook com fones de ouvido e percebo a qualidade, lembro com certa satisfação como era caro e difícil ter um som bom naquela época.

O aspecto final da questão válvula vs estado sólido é em instrumentos como a guitarra. Nesse caso, a não ser que você tenha uma preferência esquisita pelos artefatos do estado sólido, é evidente que a válvula é a melhor opção. Isso ocorre porque não só a distorção (mesmo com som “limpo”) valvulada é mais harmônica, mas porque ela interage através de feedback eletromecânico com os componentes. Em outras palavras, o som faz vibrar os componentes da válvula e essa vibração mecânica produz alterações no conjunto elétrico da coisa toda. Então é difícil uma guitarra soar como esperamos e queremos que uma guitarra soe sem um amplificador valvulado.

Mas espere, e os simuladores digitais de amplificadores? Ah, daí a coisa complica mesmo. Em testes às cegas, particularmente nos sons distorcidos, engenheiros de som não consequiram distinguir softwares como o Amplitube dos amplificadores que ele estava simulando!

E, de fato, a não ser que você seja rico como o David Gilmour e tenha um vasto galpão cheio de equipamento vintage de guitarra, a flexibilidade que tais ferramentas proporcionam é incomparável. Na verdade, Gilmour deve ter que pagar uma equipe só para ficar montando e desmontando conjuntos de equipamentos que você facilmente (e, segundo engenheiros, com qualidade) pode simular no computador.

Porém, tudo isso tem mais a ver com orçamento, status/moda e praticidade do que com som. Algumas vezes encontramos algum “xiita” do vinil ou outro fundamentalista os simuladores de amplificadores de guitarra, mas embora haja motivos para curtir a experiência do vinil, eles não são motivos objetivos, em todo caso.

Como eu disse, seu smartphone tocando FLAC está mais do que bom.

Um comentário:

  1. Obrigado pela aula... tudo o que eu imaginava saber deixou de ser verdade (ou nunca foi!). E a sua conceituação foi brilhante: o som que ouvimos depende de como o interpretamos...e não necessariamente da qualidade do equipamento no qual o reproduzimos...Nos anos 60, ouvir Beatles, Mamas & Papas, Bob Dylan e tantos outros num radinho de pilha era o máximo... Era o som de alguns gênios artísticos transmitido toscamente nas ondas do rádio versus o nada...

    Abraços

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