sexta-feira, 24 de abril de 2015

Lula Côrtes e Zé Ramalho - Paêbirú [1975]


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Nem só de "Avohai" e "Chão de Giz" viveu Zé Ramalho. A doideira atingiu o cantor, assim como diversos outros ao redor do mundo, mas aqui ocorreu antes da fama, mais precisamente no ano de 1974. Ali, Zé Ramalho, ao lado de Lula Côrtes, registrou um dos mais originais álbuns da musicultura brasileira, o raríssimo Paêbirú.

Muitas histórias existem a respeito desse disco. A principal delas, e que acabou levando o álbum a ser famoso, é a questão da sua raridade. Conta a lenda que o álbum ficou armazenado dentro do estoque da gravadora Rozenblit, principal companhia da região, a qual localizava-se ao lado do rio Capiberibe, em Pernambuco, e onde o trabalho havia sido gravado durante a primavera de 74. Porém, uma sequência de chuvas torrenciais começou a atingir Pernambuco, fazendo o rio transbordar, levando casas, vidas e o lote de discos que estava no galpão. De todo o material que havia sido gravado, conta-se que somente pouco mais de 300 cópias da versão original restaram com qualidade boa para o lançamento, as quais haviam sido levadas para a casa de Lula, e que, devido principalmente pela qualidade do material, acabaram sendo vendidos a preço de ouro, parando na mão de diversos colecionadores, principalmente no exterior.


Segundo uma entrevista de Lula Côrtes, isso tudo é lenda. O álbum acabou vendendo pouco e, devido ao alto custo de se fabricar o disco, já que o mesmo era duplo e contava com um belíssimo encarte-livreto, a gravadora preferiu não lançar mais, mas ninguém sabe se a história real é essa.

O que sim, se sabe, é que o álbum inovava em termos sonoros e visuais. Dois anos antes o Módulo 1000 havia feito algo similar com o "Não Fale Com Paredes", com sua capa tripla e com o trabalho perfeito da prensagem, mas Paêbirú trazia mais. Além do formato duplo, o encarte-livreto continha fotos, imagens e pinturas próprias dos álbuns progressivos internacionais, coisa que não havia sido vista no Brasil ainda, e tão pouco seria vista em muitos anos.

A qualidade psicodélica do som da dupla também era algo anormal para a época. Até o lançamento de Paêbirú, Zé Ramalho estava formando carreira ao lado de Alceu Valença, tendo tocado em diversos grupos na época da Jovem Guarda, dentre eles Os Quatro Loucos, o mais importante de todo o Nordeste, e registrado outra raridade brazuca, o conceitual "Marconi Notaro no Sub Reino dos Metozoários". Lula Cortês havia gravado somente o disco "Satwa" (1973), ao lado de Lailson, que trazia canções como "Alegro Piradíssimo", "Blues do Cachorro Muito Louco" e "Can I Be Satwa", uma pérola nacional garimpada, e muito, pelos quatro cantos do planeta. Vale a pena ressaltar que somente esses três LPs (Marconi Notaro ..., Satwa e Paêbirú) valem juntos mais de 4.000 reais em suas versões originais.


No início de 74, Zé Ramalho foi apresentado a Lula Côrtes, e de cara o ácido fez com que ambos viajassem juntos, afim de gravar um LP em homenagem à Pedrá do Ingá e ao sítio arqueológco de Ingá do Bacamarte. A obra conceitual começou a ser elaborada rapidamente, sendo gravada em quatro partes: Terra, Ar, Fogo e Água.

O lado A traz a Terra em seus mais de treze minutos da viajante "Trilha do Sumé - Culto a Terra - Bailado das Máscaras". Barulhos de mata, percussões indígenas e sopros que imitam moscas dão espaço para uma viajante flauta que sola sem compromisso, acompanhada por palmas e por Zé Ramalho entoando o nome de alguns planetas e a complicadíssima letra da canção. Um saxofone forte entra solando do nada, enquanto a música muda seu ritmo, onde aí sim a viagem pega solta, com diversos gritos e solos de guitarras sem o mínimo de sentido, somente a mais pura piração. Disparada, essa é a faixa mais psicodélica já gravada no Brasil, quase uma "Interstellar Overdrive". Finalmente, um belo piano acompanha um lindo solo de flauta, esse sim, sem ser viajante, que encerra a faixa acompanhado por um violão que começa a solar, dando entradas para violas caipiras que duelam de forma magnífica.

O lado B traz o Ar, agora com "Harpa dos Ares". Aqui, o violão de Zé Ramalho lembra os antigos grupos de chorinho. Sons de pássaros intercalam a bela sessão instrumental, que é regada ainda por flautas e crianças brincando. Segue "Não Existe Molhado Igual ao Pranto". O início da faixa, com o violão e viola baixinhos, cercado por gritos e sopros, leva a uma sessão lenta dos violões intercaladas por saxofones e gritos, e por mais violões que, por horas, parecem um berimbau. A letra é entoada em meio a gritos e solos de saxofone. "Omm" encerra o lado B com barulhos de animais cercados pela marcação lenta do violão e da flauta, que viaja pelo mais distante rincão acompanhando um saxofone maluco que intervém de vez em quando durante os solos de viola e violão. Simplesmente fantástico. A faixa termina com uma delirante participação do piano, bem similar aos solos de Keith Jarrett, e com muitos sons externos.


O lado Fogo abre com "Raga dos Raios" e os violões acompanhados por uma guitarra super distorcida. O clima muda totalmente nesse lado. A guitarra furiosa sola como um peão lutando contra uma tourada, enquanto o violão apenas marca o ritmo da canção, bem no estilo cancioneiro da caatinga nordestina. São dois minutos de tirar o fôlego de muito guitarrista. 

Segue a bateria e a percussão de "Nas Parede da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados por Sumé". Essa já é uma canção mais rock'n'roll, com uma boa levada de bateria e baixo, que fazem a cama para teclados solarem independentemente. O ritmo da canção lembra as músicas dos anos oitenta, como New Order, Depeche Mode, entre outros, mas claro, soando aqui bem psicodélica. A esquisita letra é entoada entre barulhos de saxofone, teclados e a marcação de baixo e bateria. A tecladeira toma conta, com saxofones, apitos e flautas viajando ao fundo da letra e do refrão, que repete o nome da canção. A instrumental "Maracas de Fogo" encerra o lado C com uma levada flamenca do violão e da percussão, acompanhados por gritos e intervenções de guitarra e os berros de "Ah, Ah, Ah, Maracatu!!".

Finalmente, o lado D, a Água, abre com "Louvação à Iemanjá", que como o nome diz, trata-se de uma louvação pasra a rainha do mar. Sons de água então dão espaço para a viola e orquestras acompanharem um solo de guitarra novamente bem distorcido, mas dessa vez sem tanta fúria como em "Raga dos Raios", mas bem mais viajante, terminando com os barulho de água que abrem a faixa "Beira-Mar", com um belo duelo de viola caipira. "Pedra Templo Animal" tem sua levada caipira construída em cima do baixo, viola e marcação do côco. Gritos intercalam a letra, que fala sobre sereias, cachoeiras e águas cristalinas. Finalmente, temos somente a sessão de "Trilha do Sumé", com os violões que encerram o lado Terra concluindo belíssimamente esse grande álbum.

O disco contou com a participação de Paulo Rafael, Robertinho de Recife, Geraldo Azevedo e Alceu Valença, entre outros, mas acabou ficando cercado mesmo pela sua sombriedade, e também pela marcante história. Porém, para aqueles que hoje acessam e fazem downloads na internet, vale a pena conferir cada segundo desse incrível álbum, do qual tive o prazer de ver um, na versão original, através de um amigo meu que pagou a bagatela de mais ou menos 2.000 reais para tê-lo em sua coleção.


(Nota: para quem se interessar, a gravadora inglesa Mr Bongo lançou uma reedição dePaêbirú em vinil de 180 gramas em 2007, já um pouco rara, que é vendida por no mínimo 200 reais entre os colecionadores. Essa versão da Mr Bongo é linda de morrer, já vi uma pessoalmente e ela mantém todo o conceito gráfico original. Vá atrás que vale a pena! Existe ainda uma versão em CD, lançada em 2005 pela gravadora alemã Shadoks, mas essa eu nunca tive o prazer de pegar na mão.)

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