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Ave Sangria, os 'Stones do Nordeste', uma história interrompida
Por José Telles
publicado no SenhorF
Ave Sangria, os 'Stones do Nordeste', uma história interrompida
Por José Telles
publicado no SenhorF
Eles usavam batom, beijavam-se na boca em pleno palco, faziam uma música
suja, com letras falando de piratas, moças mortas no cio. E eram muito
esquisitos; "frangos", segundo uns, e uma ameaça às moças donzelas da
cidade, conforme outros. Estes "maus elementos" faziam parte do Ave
Sangria, ex-Tamarineira Village, banda que escandalizou a Recife de
1974, da mesma forma que os Rolling Stones a Londres de dez anos antes.
Com efeito, ela era conhecida como os Stones do Nordeste.
"Isto era tudo parte da lenda em torno do Ave Sangria" - explica, 25
anos depois, Rafles, o ministro da informação do grupo. "O baton era
mertiolate, que a gente usava para chocar. Não sei de onde surgiu esta
história de beijo na boca, a única coisa diferente na turma eram os
cabelos e as roupas." Rafles por volta de 68, era o "pirado" de plantão
do Recife. Entre suas maluquices está a de enviar, pelo correio, um
reforçado baseado, em legítimo papel Colomy, para Paul McCartney. Meses
depois, ele recebeu a resposta do Beatle: uma foto autografada como
agradecimento.
Foi Rafles quem propôs o nome Tamarineira Village, quando o grupo tomou
uma forma definitiva, com a entrada do cantor e letrista Marco Polo.
Isto aconteceu depois da I Feira Experimental de Música de Fazenda Nova.
Até então, sem nome definido, Almir Oliveira, Lula Martins, Disraeli,
Bira, Aparício Meu Amor (sic), Rafles, Tadeu, e Ivson Wanderley eram
apenas a banda de apoio de Laílson, hoje cartunista do DP.
Marco Polo, um ex-acadêmico de Direito, foi precoce integrante da
geração 45 de poetas recifenses. Com 16 anos, atreveu-se a mostrar seus
poemas a Ariano Suassuna e a Cesar Leal. Foi aprovado pelos dois e
lançou seu primeiro livro em 66. Em 69, iniciou-se no jornalismo, como
repórter do Diário da Noite. Logo ganhou mundo. Em 70, trabalhou por
algum tempo no Jornal da Tarde, em São Paulo, mas logo virou hippie,
trabalhando como artesão na desbundada praça General Osório, em Ipanema.
O primeiro show como Tamarineira Village foi o Fora da Paisagem, depois
do festival de Fazenda Nova. Vieram mais dois outros shows, Corpo em
Chamas e Concerto Marginal. A partir daí a banda amealhou um público
fiel.
Ciganos
A mudança do nome aconteceu quando o grupo passou a ser convidado para
apresentações em outros Estados. Os músicos cansaram-se de explicar o
significado de Tamarineira Village. O Ave Angria, segundo Marco Polo,
foi sugestão de uma cigana amalucada, que encontraram no interior da
Paraíba: "Ela gostou de nossa música e fez um poema improvisado,
referindo-se a nós como aves sangrias. Achamos legal. O sangria, pelo
lado forte, sangüíneo, violento do Nordeste. O ave, pelo lado poético,
símbolo da liberdade do nosso trabalho.
Na época, o som do Quinteto Violado era uma das sensações da MPB. Não
tardou para as gravadoras mandarem olheiros ao Recife em busca de um
novo quinteto. A RCA foi uma delas. O Ave Sangria foi sondado e recusou a
proposta (a RCA contratou a Banda de Pau e Corda).
O disco viria com a indicação da banda, pelo empresário dos Novos
Baianos, à Continental, a primeira gravadora a apostar no futuro do rock
nacional. Antecipando a gozação por serem nordestinos, os integrantes
da banda chegaram no estúdio Hawai, na Avenida Brasil, Rio, todos de
peixeira na mão: "Falamos para o pessoal ter cuidado, porque a gente
vinha da terra de Lampeão", relembra Almir Oliveira. Foi um dos poucos
momentos de descontração da banda. Com exceção de Marco Polo, nenhum dos
integrantes conhecia o Rio e jamais haviam entrado num estúdio de
gravação.
De peixeira na mão
Como agravante, quem produziu o disco foi o pouco experiente Marcio
Antonucci. Ex-ídolo da Jovem Guarda (formou a dupla Os Vips, com o irmão
Ronaldo), Antonucci ficou perdido com o som que tinha em mãos, e o pôs a
perder: "Ele não entendeu nada daquela mistura de rock e música
nordestina que a gente fazia, e deixou as sessões rolarem. O diabo é que
a gente também não tinha a menor experiência de estúdio", conta o
guitarrista Paulo Rafael. Resultado: o disco acabou cheio de timbres
acústicos. O Ave Sangria, involuntariamente, virou uma espécie de
Quinteto Violado udigrudi. E adulterado não foi apenas o som. A
gravadora não topou pagar pela arte da capa e colocou em seu lugar um
arremedo do desenho original, assinado por Laílson.
O disco, mesmo pouco divulgado, conseguiu relativo sucesso no Sudeste, e
vendeu bastante em alguns Estados do Nordeste. Uma das músicas que
fizeram mais sucesso, e polêmica, foi o samba-choro Seu Waldir. "Seu
Waldir o senhor/ Machucou meu coração/ Fazer isto comigo, seu Waldir/
Isto não se faz não... Eu quero ser o seu brinquedo favorito/ Seu apito/
Sua camisa de cetim..." Numa época em que a androginia tornava-se uma
vertente da música pop. Lá fora com o gliter rock de David Bowie, Gary
Glitter e Roxy Music com Alice Cooper, a aqui com o rebolado dos Secos
& Molhados, Seu Waldir foi considerado pelos moralistas
pernambucanos como uma apologia ao homossexualismo, quando não passava
de uma brincadeira do irreverente do Ave Sangria.
Seu Waldir por pouco não vira mito. Uns diziam que era um senhor que
morava em Olinda, pelo qual o vocalista do Ave Sangria apaixonara-se.
Outros, que se tratava de um jornalista homônimo. Enfim, acreditava-se
que o tal Waldir era um personagem de carne e osso. Marco Polo esclarece
a história do personagem "Eu fiz Seu Waldir, no Rio, antes de entrar na
banda. Ela foi encomendada por Marília Pera para a trilha da peça A
Vida Escrachada de Baby Stomponato, de Bráulio Pedroso, que acabou não
aproveitando a música".
.
O Departamento de Censura da Polícia Federal não levou fé nesta versão.
Proibiu o LP e determinou seu recolhimento em todo território nacional. A
proibição incitada, segundo os integrantes do Ave Sangria, pelo hoje
colunista social do Diário de Pernambuco, João Alberto: "Ele tocava a
música no programa de TV que ele apresentava e comentava que achava um
absurdo, que uma música com uma letra daquelas não poderia tocar
livremente nas rádios", denuncia Rafles. Almir Oliveira diz que lembra
dos comentários do jornalista na televisão: "Mas não atribuo diretamente
a ele. Se não fosse ele, teria sido outra pessoa, a música era mesmo
forte para a época", ameniza. A proibição, segundo comentários da época,
deveu-se a um general, incentivado pela indignação da esposa, que não
simpatizou com a declaração de amor a seu Waldir.
O disco foi relançado sem a faixa maldita, mas aí o interesse da mídia
pelo grupo já havia passado. A Globo, por exemplo, desistiu de veicular o
clipe feito para o Fantástico, com a música Geórgia A Carniceira. O
grupo perdeu o pique: "A gente era um bando de caras pobres, alguns já
com filhos, a grana sempre curta. No aperto, chegamos até a gravar
vinhetas para a TV Jornal (uma delas para o programa Jorge Chau)",
relembra Marco Polo.
Em dezembro de 1974, o Ave Sangria parecia querer alçar vôo novamente. O
grupo fez uma das suas melhores apresentações, com o show Perfumes
& Baratchos. O público que foi ao Santa Isabel não sabia, mas teve o
privilégio de assistir ao canto de cisne da Ave Sangria. Foi o último
show e o fim da banda.
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