quarta-feira, 23 de maio de 2018

Titãs - Doze Flores Amarelas A Opéra Rock Ato III [2018]

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Por Marco Aurélio de Souza em Collectors Room

É Rita Lee quem nos conta, em terceiro e último interlúdio, sobre o plano de vingança das Marias: “Juntas de novo, queríamos enfrentar aqueles cinco filhos da puta”. Auxiliadas novamente pelo aplicativo Facilitador – o que não fica claro nas canções, mas sim no espetáculo –, as meninas acabam concebendo a morte de um dos seus agressores. Sobre este evento misterioso, a consumação da vingança, é que a maior parte das canções do terceiro ato irá repercutir.

Com vigoroso riff de guitarra, "Me Chamem de Veneno" nos devolve à história com uma dose extra de peso e energia renovada. Sugerindo a via encontrada pelo aplicativo para dar fim à vida de um dos estupradores, ela abre caminho para o clímax sombrio da história. Mais grave e soturno do que os anteriores, o terceiro ato de Dozes Flores Amarelasencontra nos arranjos de piano e orquestra um diferencial que, na reta final da narrativa, engrandece o desfecho da ópera e contribui para a sua plena realização – a canção título é, por metonímia, o exemplo mais preciso desta contribuição. Apresentada em show do Rock in Rio, "Doze Flores Amarelas" já era conhecida pelos fãs mais atentos, porém, sua execução ao vivo, com certa crueza garageira que é marca da formação atual dos Titãs, não nos permitia vislumbrar todo o seu potencial. Aqui, em sua versão de estúdio, melhor experimentamos o seu clima denso. Em termos de estrutura lírica e melódica, a canção difere de tudo o que o grupo paulista já fez. Ritmo cadenciado e atmosfera fúnebre, com direito a Sérgio Britto e Branco Mello em dueto de vozes e solo de guitarra de Belloto. É um dos grandes momentos do disco. 

Em sequência de contraste irônico, "Ele Morreu" nos toma de assalto com sua levada pop, dançante e descontraída, enquanto aborda a repercussão da morte inesperada (não para nós, é claro) do agressor. A morte do rapaz reverbera ainda em três canções subsequentes. "Pacto de Sangue" é, em todo o disco, o primeiro e único momento em que temos uma canção cantada exclusivamente pelas atrizes convidadas. Sua letra aborda o compromisso de silêncio que as Marias assumem frente aos desdobramentos da vingança, sugerindo, enfim, a gravidade e a culpa que a situação de fato as impõe. Aqui, Corina Sabbas, Cyntia Mendes e Yas Werneck comandam o curso da narrativa, preparando o terreno para a participação decisiva que terão, também, nas canções finais do álbum. Por seu sabor performático e sua presença vocal, a canção é um dos raros momentos em que, deixando de lado a própria banda, encontramos o formato musical em sua potência máxima, tendo a sensação de acompanharmos uma trilha sonora de espetáculo hollywoodiano.

"O Jardineiro", por sua vez, embora estruturalmente dispensável à narrativa, traz à ópera um delicioso slide de guitarra que, com sua levada de surf music, cativa o ouvinte logo à primeira audição. Nela, Branco Mello encarna o coveiro gago que enterrou o defunto da história, esbanjando carisma por sua dicção peculiar: “Eu sósósó sou o coveiro / deste lugar”. A morte será tema, por fim, de outro rock com roupagem mais pesada. Iniciada por um zunido de guitarra, que mais parece ter fugido de algum metal alternativo, "Réquiem" resgata a voz do falecido que, como um Brás Cubas juvenil, sugere que os mortos devem ser esquecidos, em favor dos vivos. Sua letra nos confronta com um dado etário perturbador: pedindo para que o lembrem “saindo da aula”, “andando de skate”, “falando no Face como todo o mundo fala”, a letra nos lembra da juventude das personagens que, vítimas ou culpadas, partilham todas de uma mesma inconsequência adolescente.

Os momentos finais da ópera titânica reforçam as características anteriormente evocadas, com duas grandes melodias que, no plano instrumental, são acompanhadas por belíssimos arranjos de piano e orquestra, além de excelentes atuações das vocalistas convidadas, tanto no que se refere aos backing vocals quanto nas vozes principais. Em sua formação clássica, contando com a presença incomum – em se tratando de uma banda de rock – de cinco vocalistas, o bom uso do backing vocal foi sempre uma das marcas mais evidentes da música dos Titãs. Com tantas baixas, reduzida a sua oferta de vozes, as participações especiais proporcionaram à banda um excelente recurso que, muito bem explorado, é um dos pontos altos do trabalho inteiro.

"É Você" anuncia a transformação interior das Marias, que começam seu percurso de reconstrução identitária resgatando uma autoconfiança perdida diante dos acontecimentos traumáticos por que passaram ao longo da história. Identidade, aliás, é o grande tema que, motivo na canção inicial, retorna através da derradeira "Sei que Seremos". Nesta, as três Marias reassumem o controle sobre suas vidas, delineando um grande final para o projeto que, certamente, ficará marcado na discografia dos Titãs, ocupando nela um lugar especial. Contando com o melhor riff de guitarra de todo o disco, "Sei que Seremos" peca apenas pela sua brevidade: seus pouco mais de dois minutos nos deixam, ao final, com um gostinho de “queria ter um pouco mais disso”, afinal, a canção põe fim a um conjunto expressivo de 25 novas composições, número inédito em toda a história da banda, e por isso bem merecia um seu prolongamento natural.

Fechado o terceiro ato, temos, por fim, melhor visão de conjunto e condições efetivas para exprimir uma visão de panorama. De forma geral, a ampla maioria das canções sobrevive de forma autônoma, embora bem integradas à narrativa. Isto importa na medida em que garante a sobrevivência dos temas para além da experiência do espetáculo, ou da audição integral do álbum. A necessidade de contar uma história, por sua vez, inseriu muitos elementos estranhos à sonoridade titânica, o que, longe de ser algo ruim, expande os limites (já tão elásticos) que a estética da banda possui. Doze Flores Amarelas corresponde, portanto, à expectativa que o grupo promoveu e está promovendo em torno de seu lançamento, assumindo a forma de um grandioso disco de rock, com os elementos todos que são esperados a este formato – versatilidade, relevância, força de composição. Projeto inédito no Brasil, somente este feito já garantiria a presença do álbum nos anais da história do rock brasileiro. Mais do que isso, porém, o disco também nos entrega um conjunto de canções que, mesmo diante de uma concorrência de alto nível, podem conquistar seu lugar em qualquer coletânea do grupo, a exemplo de "Nada nos Basta", "Disney Drugs", "Eu Sou Maria", "O Bom Pastor" ou "Doze Flores Amarelas". Por outro lado, a descontextualização de certas letras – a exemplo de "Fim de Festa" e "Não Sei", que dão voz aos agressores – e, especialmente, a qualidade do registro em estúdio, podem se tornar um problema para as apresentações ao vivo: neste último quesito, para além dos espetáculos de teatro, muitas destas composições encontrarão dificuldade de espaço no repertório de eventuais futuras turnês, por limitações materiais de execução – caso, por exemplo, das canções que contam com grande presença dos vocais femininos e de arranjos de orquestra, as quais podem perder força em um formato mais cru.

Evidentemente, ainda é cedo para compreendermos ou afirmarmos qual será o status de Doze Flores Amarelas dentro da obra completa dos Titãs. As comparações, embora inevitáveis, carregam sempre um quê de injustiça, por não levarem em consideração os fatores inúmeros que se conjugam no momento da construção de um disco – bem como o fato de que o tempo, inexorável, a tudo e a todos transforma. Independente do juízo crítico, porém, faz-se imperioso reconhecermos que Sérgio Britto, Branco Mello e Tony Belloto, acompanhados de um grande time, por aceitarem (e se auto imporem) tamanho desafio criativo a esta altura do campeonato, demonstram grande compromisso com sua própria trajetória, entregando a seus fãs um trabalho com a dimensão e a estatura que se espera sempre de uma grande banda de rock. Ambiciosos como nunca, os integrantes remanescentes mostraram seu poder de fogo com este lançamento memorável, provando que a força da banda, mais do que em um ou outro nome, sobrevive mesmo através do peso que sua história investe naqueles que a continuam. Para além de um grande disco, Doze Flores Amarelas é, portanto, uma demonstração inequívoca que os remanescentes da formação clássica deixam ao seu público de que, sim, continuaremos carregando enquanto possível este nome, de Titãs, não como um meio mais cômodo para pagarmos as contas, mas sim pela consciência aguda daquilo que somos e já fizemos, mirando sempre no muito que, é claro, ainda se está por fazer.

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