Por Mauro Ferreira em Notas Musicais
Em 1982, quando entraram num sonhado estúdio de oito canais para gravar a seminal coletânea Grito Suburbano, músicos das bandas Cólera, Inocentes e Olho Seco se depararam com a ignorância do técnico de som sobre o rock que já explodia nas periferias de São Paulo sob a ideologia punk. O tal técnico implicou com chiado que, a rigor, era o som distorcido das guitarras dos grupos. O episódio é relembrado com humor no documentário Botinada - A Origem do Punk no Brasil, produzido e dirigido por Gastão Moreira sobre a geração punk formada em São Paulo (SP) na virada dos anos 70 para os 80.
Com entrevistas inéditas e um farto material de arquivo, o filme rebobina a (des)articulação de um movimento que precisou aparar as próprias arestas para se firmar. "A maioria queria saber de farra e treta", dispara João Gordo, pioneiro militante punk que migraria para o metal ao ingressar no grupo Ratos de Porão. "No início, punk rock não era movimento. Era gangue. Que era contra o sistema e até o cara do outro bairro", corrobora Clemente, líder e mentor do Inocentes que atualmente se reveza entre seu grupo mais conhecido e o posto recém-adquirido de vocalista da Plebe Rude, banda nascida em Brasília também sob a influência do punk.
A propósito, a primazia de ter semeado o punk em solo brasileiro é reivindicada no filme (com razão) tanto por paulistas quanto por brasilienses. Botinada foca seu olhar terno, mas imparcial, sobre a geração de São Paulo, sem deixar de citar a desgarrada Banda do Lixo, nascida em Minas Gerais, e a cena gaúcha, representada no filme pelo lendário Wander Wildner, o líder do grupo Replicantes.
Entre imagens inéditas (como a histórica apresentação do Cólera no Olimpop, programa da TV Tupi) e depoimentos reveladores, o documentário historia a aglutinação dos punks no Metrô de São Bento e a rivalidade com as gangues do ABC que resultaria em conflitos sangrentos e triunfaria no clássico festival O Começo do Fim do Mundo, que deu em 1982 repercussão internacional a um movimento então (a rigor) desconhecido pelo próprio Brasil.
A riqueza do material de arquivo - que inclui trechos de corajosos documentários da época como Garoto de Subúrbio e Punks - contribui para atestar a veracidade dos depoimentos e fatos. É possível ver a banda Lixomania em show feito no Circo Voador (RJ) em 1983 e imagens da apresentação nada amistosa de grupos punks na boate Gallery (SP), reduto da elite burguesa, um alvo preferencial da revolta disseminada pelos repertórios das bandas.
Botinada lembra ainda que, impulsionada pela violência que insistia em se alastrar no universo punk, a incompreensão da mídia a respeito da ideologia dos grupos geraria desfocadas reportagens no jornal Estado de São Paulo e no programa Fantástico (da Rede Globo) que, em maior ou menor grau, contribuiriam para a diluição do movimento, cuja semente ainda germina em corações e mentes como a de Pádua. "Sou punk e vou morrer punk", diz o músico, que perdeu uma mão ao manusear bomba caseira em conflito com gangue rival. O depoimento firme de Pádua encerra o belo filme, sinalizando que a história continua.
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