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Por Walter
Existe um aspecto fascinante na obra de artistas veteranos que apenas os seus últimos anos podem oferecer. Se antes eram mais um em busca de um lugar ao sol, após tantos discos vendidos, turnês realizadas, o artista de repente não se vê mais no foco dos holofotes, sem a responsabilidade de ser a novidade que encherá os cofres de sua gravadora. A construção de um nome lhe permite poder compor seus discos com mais calma, mais relaxada, sem a obrigação de produzir sempre um grande hit. Eis a razão pela qual as produções mais recentes de um veteranos não devam ser desconsideradas frente aos seus clássicos, até porque esses últimos tiveram a passagem do tempo (e centenas de performances ao vivo) ao seu favor.
“Reza”, novíssimo álbum de Rita Lee, é um interessante testemunho dos efeitos dessa passagem do tempo. A cantora, que recentemente anunciou sua aposentadoria dos palcos (embora já circulem boatos de uma nova turnê), carrega nas costas uma longeva carreira, iniciada no pioneirismo do rock psicodélico no Brasil com o talvez primeiro grande grupo de rock brasileiro – os Mutantes. Após cinco discos lançados e uma conturbada ruptura do grupo, uma série de trabalhos solos (em conjunto com a banda de apoio Tutti Frutti) solidificou o seu nome em um período conturbado para o rock nacional, onde apenas ela e Raul Seixas conseguiram sucesso massificado. Os anos 80 também trouxeram grandes álbuns e hits (“Rita Lee”, de 1980, é lindo), e desde então Rita sempre têm aparecido nas rádios com alguma canção.
“Reza” é o primeiro álbum da “mãe do rock nacional” em 9 anos, hiato justificado pela cantora por “pura preguiça”. O trabalho contém 14 faixas, sendo 10 delas assinadas com o seu parceiro de longa data Roberto de Carvalho. É testemunho da passagem do tempo por que é o disco mais psicodélico de Rita há anos, remetendo imediatamente ao seu período com os Mutantes. O álbum é construído a partir de bases eletrônicas, servindo de suporte para os passeios de guitarras, violões e instrumentos pouco convencionais, como o russo Theremin, fornecendo tanto números construtivistas que causam estranheza a ouvidos menos tolerantes quanto confortáveis canções de pop-rock.
Na questão temática, o álbum parece dividir-se em duas frentes: na primeira, presente em boa parte das primeiras cinco faixas, Rita apresenta um conteúdo semi-autobiográfico, incorporando questionamentos quase sempre visíveis na obra de um artista já em idade avançada: “quanto tempo ainda tenho no mundo. Eons? Milênios? Milésimos de segundo?”, ela se pergunta em “Divagando”, pensamento complementado em “Vidinha”: “não sei onde estava antes de nascer. Não sei pra onde vou depois de morrer”. Em “Reza” e “Tô um Lixo”, letras irônicas que contrasta algumas ações com suas consequências imediatas.
O segundo eixo traz as ironias e o estilo irreverente da cantora. Em “As Loucas”, uma letra feminista atesta a canalhice masculina: “eles amam as loucas, mas se casam com outras… Para um jantar, as educadas… Para uma sacanagem, as loucas”. “Bixo Grilo” (com sua melodia psicodélica e vocal cantado à lá Lou Reed) e “Rapaz” estão impregnadas com uma sensualidade tão eficiente e própria que é capaz de dar inveja a uma Britney Spears da vida. “Paradise Brasil” traz uma letra em inglês em cima de uma cama tropicalista, lembrando um período em que Carmem Miranda significava a promoção brasileira no resto do mundo (ela também não carregaria uma ironia, com uma letra patriota cantada em inglês?).
“Bagdá” novamente remete ao tropicalismo ao construir uma melodia em cima de um divertido jogo de palavras, algo também utilizado em “Tutti Fuditti” e “Bamboogiewoogie”: “Saddam Hussein pra lá, aiatolá pra cá, tabouli esfiha kibe humus vatapá”.
No aspecto sonoro, “Reza” tem aquela atmosfera homogênea de álbuns caseiros, justificada pelo uso de loops e programações eletrônicas em quase todas as faixas. Talvez, nesse sentido, o álbum peque um pouco por manter sempre essa mesma base, apesar das direções distintas que temas e ritmos dão ao longo do passar das faixas.
“Reza” é, portanto, um ótimo passo de uma lenda da música brasileira que ainda pretende brindar seus fãs com novas composições, apesar do catálogo enorme em suas costas. Aqui temos uma Rita envelhecida, mas ainda fiel a um estilo de composição que já não existe mais há um bom tempo, incorporando passado e presente sem parecer forçado. Eis o grande trunfo dos veteranos.
de Dó Ré Mi Fá
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