terça-feira, 27 de agosto de 2019

Cotonete & Di Melo - Atemporal [2019]

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Por Fred Melo Paiva e Pedro Alexandre Sanches em Carta Capital

O cantor pernambucano ressurge em disco com a banda francesa Cotonete e explica a relutância em voltar a cantar o alegre hino black Kilariô


Kilariô/ raiou o dia/ eu vi chover em minha horta/ ai, ai, meu Deus do céu,/ quanto eu sofri ao ver a natureza morta. A tristeza estava inscrita nos versos vivos de Kilariô, de Di Melo, mas a sonoridade do samba-rock era pura alegria. Hoje, aos 70 anos, o cantor e compositor pernambucano do Recife mantém relação conturbada com o maior sucesso popular de uma errática carreira comercial, que ficou interrompida entre 1975, ano de Kilariô, e 2015, quando ele lançou o autorreferente Imorrível. Desaparecido Di Melo nesse ínterim, eram constantes os boatos de que ele teria morrido. Os discos que lançou nesse período passaram completamente despercebidos.

Eram exagerados os boatos. Di Melo ficou na retranca até que, em 2009, ouvidos estrangeiros começaram a prestar atenção nas faixas do antigo LP Di Melo (1975), em que figuravam músicos acompanhantes virtuosos como Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte e Geraldo Vespar. O grupo de rap Black Eyed Peas sampleou Di Melo em um de seus discos. Imorrível proporcionou a renascença (quase) comercial, agora aprofundada pelo recém-lançado álbum duplo inédito Atemporal, dividido com a big band francesa Cotonete. Mais uma vez se repete a enfadonha história do artista brasileiro que só renasce das cinzas depois de percebido por ouvidos gringos. Com exemplares de Di Melo vendidos na Europa a 700 euros, veio o documentário em média-metragem Di Melo – O Imorrível, dirigido em 2011 por Alan Oliveira e Rubens Pássaro.

Di Melo explicita a relutância que exibe sempre que lhe pedem para executar Kilariô: “Ela me remete a algumas coisas que foram tristes na minha vida. Quando foi gravada, era para ser uma coisa bonita, mas fui muito sacaneado naquela época. Me surrupiaram de todas as formas, me sacanearam sob todas as normas. Eu nunca falei isso para ninguém, mas sempre que me vem à mente Kilariô surge a cena. No palco ela distribui energia e alegria. É uma música iluminada, abençoada, mas só quem vive é que sabe e sente, não é? Aconteceram coisas imperdoáveis, que me trouxeram até aqui”. A sombra de tristeza aparece e logo é espantada pelo homem-alegria que Di Melo aparenta ser. Clareou, raiou o dia.

O compositor guarda 12 inéditas em parceria com Geraldo Vandré

Antes da estreia em disco e da relativa fama, Di Melo (ou Boby d’Melo, como Roberto de Melo Santos assinava no princípio) foi guardador e lavador de carros no Recife. Mudou-se para São Paulo em 1968 e, já engrenando na carreira artística, viajou para trabalhar em Tóquio, no Japão, onde Kilariô foi composta. De volta a São Paulo, foi levado pela cantora de bossa negra Alaíde Costa ao mítico bar Jogral, onde passou a se apresentar como número de abertura. O sucesso veio com o LP que, além de Kilariô, trazia títulos de grande expressividade, agridoces, como A Vida em Seus Métodos Diz Calma, Conformópolis e Se o Mundo Acabasse em Mel.
DI MELO TEVE UMA CARREIRA INTERROMPIDA POR 40 ANOS, E ACABA DE LANÇAR O ÁLBUM INÉDITO ATEMPORAL. (FOTO: ACERVO PESSOAL)
A cidade acorda e sai pra trabalhar/ na mesma rotina, no mesmo lugar (…) ela então desperta, ela tenta gritar/ contra o que lhe aperta e que lhe faz calar/ mas ela, deserta, começa a chorar, canta em sotaque nordestino o tango soul Conformópolis, metáfora de um Brasil que teima em se perpetuar. Vai com calma, você vai chegarvem na contramão à inspirada A Vida nos Seus Métodos Diz Calma. Nessa época, Di Melo passou a ter sucessos gravados por nomes mais ou menos black power, como Jair Rodrigues (Paspalho) e Wando (Volta), este em fase samba-rock, pré-romântica.

“O disco da Odeon estava tocando, tudo que puseram na rua vendeu”, Di Melo relembra a primeira rodada de glória. “Fui receber o trimestre de direito autoral, vieram 11 cruzeiros. Fiquei desencantado, me senti dando murro em ponta de faca, assinando atestado de imbecil. Aí saí de cena, fui para as praias, não levei o som mais a sério, fiquei curtindo, batendo viola em praia. Mas nunca parei de cantar e compor.” No documentário, ele fala sobre esse período: “Quando você é jovem, acha que para você o mundo não vai acabar nunca. Mulher, bebida, noites, farras. Você se perde”.

Di Melo filosofa sobre o que foi e o que poderia ter sido: “Não fico chateado porque a vida foi ingrata comigo. Se eu tivesse a cabeça que tenho hoje, eu teria dado seguimento. Mas eu era muito jovem e decidi sair do lodaçal. Quando a coisa tem que ser, você persegue ela durante uma periodicidade e depois ela passa a te perseguir”.

Antes que Kilariô passasse a persegui-lo, houve, nos anos 1980, o encontro de Di Melo com o homem para sempre perseguido por Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (1968). Na semiclandestinidade (de ambos), conheceu o paraibano Geraldo Vandré, com quem, revela agora, compôs 12 canções, suficientes para um álbum inteiro Di Melo-Vandré. Uma delas, a latina Canta Maltina, foi apresentada no disco Imorrível, e se vale de um idioma inventado, latino-indígena-brasileiro. Outra, Linhas de Alinhar, de acento nordestino, vem à luz no novo Atemporal. “A priori imaginei que Vandré quisesse que eu desse sequência ao trabalho dele”, conta. “Ledo engano, ele queria passear. Gostou de mim porque eu estava cantando uma música muito poderosa. Ele achou que eu poderia dar essa sequência, e eu também imaginei que isso fosse rolar. A gente saiu viajando, fomos num Galaxy para a Paraíba, para o Paraguai.”
A CANTORA ALAÍDE COSTA LEVOU DI MELO AO BAR JOGRAL, E COM GERALDO VANDRÉ GRAVOU PARCERIAS. (FOTO: ACERVO PESSOAL)

Linhas de Alinhar evidencia o que já sabia quem ouviu o Di Melo de 1975: para lá de um artista suingueiro de black music, Di Melo ostenta poderosa veia brasileira, nordestina, pernambucana. Misteriosa e narrada por alguém “farto da angostura”, a canção fala de uma “explicação que não houve, não há, nem haverá”, e de um “clima que apavora nessa estrada tão escura”. Linhas de Alinhar é exemplo perfeito daquilo que Di Melo diz sobre as próprias canções: “Qualquer música minha tem nexo e tem plexo, não só sexo”. No embalo, o intérprete de Conformópolis critica o estado das coisas: “A música está resumida a peitos e bundas. É triste, é dolorido, porque você trabalha, trabalha, trabalha e não tem usufruto do teu trabalho”.

“Qualquer música minha tem nexo e tem plexo, não só sexo”

A sombra triste reaparece quando é hora de falar do Brasil atual. “Temos tudo pra ter tudo. Temos amianto, bauxita, prata, ouro, cobre, manganês, zinco. Mas não vira, não vira, e não vai virar nunca. É tudo muito difícil. Às vezes você levanta o pé pra dar um passo pra frente e sente dando dez passos pra trás.” A vida, ele admite, segue difícil e distante dos métodos da calma: “A coisa chegou num momento crucial. Eu olho pro lado e não vejo ninguém feliz, ninguém satisfeito. Todo mundo reclamando. Está difícil pagar as contas. As pessoas estão cada vez mais perdendo tudo que conseguiram na vida. É só problema, problema, problema, problema. Não vejo ninguém apontando muita solução, é desesperador. Às vezes você quer conseguir andar e está ali brecado, no freio de mão. É tudo muito estranho, errado, truncado”.

O álbum com o Cotonete (que em 2017 gravou um disco com outra brasileira, a paranaense Simone Mazzer) é o antídoto de Di Melo para as previsões mais sombrias (“liberar armas não é solução, e daqui para frente vai piorar cada vez mais”). Entre as oito canções, há uma regravação alegre-e-triste de Kilariô. Para explicar a contradição e a relação de amor e ódio com Kilariô, Di Melo se vale de uma antiga composição do paraense Billy Blanco, Canto Chorado (1968). “Nunca vi uma coisa tão certa (declama): o que dá pra rir dá pra chorar/ questão só de peso e medida/ problema de hora e lugar”, gargalha.


A1 Papos Desconexos (Part. 1)
A2 Papos Desconexos (Part. 2)
A3 A.E.I.O.U. (Album Mix)
B1 Muhler Instrumento (Part. 1)
B2 Muhler Instrumento (Part. 2)
C1 Canto Da Yara
C2 Kilario (2019 Version)
D1 Linhas De Alinhar
D2 Verso E Prosa

Um comentário:

  1. O Hiato produz lembrança, lembrar é viRe-viver , lembrança é vivência, então vende-se lembrança.
    Tudo vale, viver vale tudo !!!
    Parabéns para as Estrelas que iluminam as estradas...

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