sábado, 31 de outubro de 2015

À frente de seu tempo, Ronnie Von, o novo 'mito' da psicodelia nacional

Por Fernando Rosa em senhor f

No palco do festival Bananada 2000, em Goiânia, a banda gaúcha Vídeo Hits enlouquece a galera com a canção Silvia 20 Horas Domingo - psicodélica e, ao mesmo tempo, extremamente pop. Em um sítio em São Paulo, o grupo alagoano Mopho ensaia um novo repertório, adicionando mais informações ao seu já colorido mix sonoro, entre elas os velhos vinis psicodélicos de Ronnie Von. No centro das atenções um raríssimo e pouco conhecido álbum do cantor, lançado em 1968, com arranjos do maestro Damiano Cozzela (um dos arranjadores do primeiro álbum tropicalista de Caetano Veloso) e participação do grupo gaúcho de Jovem Guarda, Os Brasas.

As cenas, as lembranças e as referências ao álbum, que talvez surpreendam o próprio Ronnie Von, não têm sido exclusividade do momento registrado pelo senso arqueológico de Senhor F e seus antenados colaboradores. Aqui e ali, de maneira cada vez mais intensa, a obra de Ronnie Von parece estar sendo redescoberta em sua verdadeira dimensão, a exemplo da versão do Ira! para Minha Gente Amiga (que virou um sacolejante funk-latino-psicodélico, com a sempre ótima guitarra de Edgar Scandurra). Passados tantos anos de um preconceituoso e praticamente imposto anonimato, a justiça parece estar chegando para o jovem que, nos anos sessenta, foi bem mais do que apenas o Princípe da Jovem Guarda.

Um dos mais radicais beatlemaníacos, e responsável pelo batismo dos Mutantes, a quem deu força quando eram ilustres desconhecidos, Ronnie Von construiu uma tão invejável quanto pouco conhecida discografia, especialmente entre 1966 e 1972. Iniciando sua carreira no Rio de Janeiro, com apoio do grupo The Brazilian Bitles, integrou a Jovem Guarda, mas sempre esteve mais próximo da beatlemania, como não deixa dúvida seu álbum de estréia, onde sete das doze canções são de Lennon & McCartney - e outra dos Rolling Stones (As Tears Goes Bye). Não por acaso, é em seu programa de televisão, O Pequeno Mundo de Ronnie Von, que os Mutantes tiveram espaço para dar os primeiros passos da carreira, tocando Beatles ou temas clássicos com arranjos roqueiros.

De origem social mais elevada, mas nem por isso metido a besta, dono de uma beleza que provocava inveja e suspiros, e intérprete sensível e ousado, Ronnie Von, na verdade, sempre esteve além do seu tempo. Avesso a rótulos, depois do estrondoso sucesso com Meu Bem/Girl (de Lennon & McCartney), em 1966, e do estouro ainda maior do hit A Praça, ele entrou de cabeça no moderno pop, na psicodelia e, até mesmo, no progressivo, o que lhe custou a incompreensão de boa parte do público. O álbum gravado em 1968, especialmente, e os seguintes - A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nuncamais (1969) e A Máquina do Tempo (1970) radicalizaram a orientação experimentalista do cantor.

O disco com Os Mutantes (e os Beat Boys), lançado em 1967, arranjado por Rogério Duprat, traz, entre outras coisas, um cover para uma canção dos Hollies - Lullaby To Him, uma composicão de Caetano Veloso, que divide com ele os vocais, e uma enfiada de músicas estranhas. No mesmo ano de 1967, de sua parceria com o grupo Baobás que, a seguir, teve o ex-Mutantes e atual produtor Liminha entre seus membros, resultou o compacto com Winchester Catedral, em versão de Fred Jorge, e Menina Azul, em parceria com o guitarrista do grupo, Ricardo Contins. Mas foi com o disco seguinte, intitulado apenas Ronnie Von (veja na seção Discos Raros), lançado em 1968, que o Pequeno Príncipe perdeu definitivamente a inocência, desafiando padrões, fórmulas e pré-conceitos.

Com uma capa totalmente psicodélica, onde ele posa de peito nú, como uma espécie de Joe D'Alessandro (ator dos filmes de Andy Wharol) dos trópicos, o álbum não deixava dúvidas sobre o seu conteúdo musical. À frente dos arranjos estava o maestro Damiano Cozzela, de orientação e formação concretista, da mesma escola que já tinha projetado Rogério Duprat (responsável pela apresentação) junto aos Mutantes e demais tropicalistas. O repertório, coeso e instigante, trazia desde peças "espaciais" pré-Pink Floyd, como Mil Novecentos e Além/Tristeza Num Dia Alegre, pequenas sinfonias pop do porte de Espelhos Quebrados (na linha de Eleanor Rugby) e maravilhas garageiras-psicodélicas como a já citada Silvia 20 Horas Domingo, entre outras - o compacto com essas duas canções é um clássico da discografia roqueira nacional.

O disco seguinte - A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nuncamais, lançado em 1969, também com Damiano Cozzela, é menos ousado, mas contém inovações sonoras surpreendentes para a época. Nesse disco, Ronnie Von experimenta um caminho mais pop, incluindo no repertório o clássico da MPB Dindi (Jobim e Aloysio de Oliveira), Atlantis (Donovan) e I Started A Joke (Bee Gees), formatados pelos criativos arranjos de Cozzela. No disco seguinte, A Máquina Voadora, Ronnie ainda explora sonoridades que, de certa forma, anteciparam o rock progressivo nacional, que só desenvolveu-se por volta de 1972, com o surgimento de bandas como Módulo 1000, Veludo Elétrico e outras.

Em um momento musical, social e político pós-AI 5, com a Jovem Guarda esgotada e o tropicalismo sendo banido, obras de tamanha ousadia não poderiam ter outro destino senão chocar-se com a massificação alienante que já apontava no horizonte. Sem hits marcantes, os álbuns gravados entre 1967 e 1970 foram varridos das rádios e, consequentemente, das paradas de sucesso, empurrando seu autor para um longo ostracismo. Nos anos setenta, apesar de hits esporádicos, como Cavaleiro de Aruanda, bem que ele tentou retomar o tempo perdido, mas como antes, não aceitava a imposição de modelos, rótulos ou estilos pré-determinados pelo mercado.

A partir de então, incompreendido e lembrado (rotulado) mais pela beleza física do que pela música, Ronnie Von construiu uma carreira de sucesso no exterior, a partir da canção Tranquei a Vida (1976), onde se apresenta até hoje. À margem de uma digna, silenciosa e justificada mágoa, aos poucos Ronnie Von está conquistando o reconhecimento que merece, como um músico que esteve na vanguarda musical de sua época. Não é por acaso que, apesar dos transtornos históricos e da ignorância editorial das gravadoras, Ronnie Von permanece vivo até hoje no imaginário popular, alimentando velhos sonhos e fantasias e atiçando a curiosidade da parcela mais saudável das novas gerações.

4 comentários:

  1. Grande postagem, a obra psicodélica do Ronnie Von é sensacional!
    Também recomendo o recente documentário "Quando Éramos Príncipes", retratando essa sua fase.

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    1. Esse documentário é sensacional. Foi postado aqui há um tempo atrás.

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  2. Não está mais disponível infelizmente.

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    1. Você está ser referindo ao documentário ? Se for, segue o link
      http://portrasdavitrola.blogspot.com.br/search/label/Ronnie%20Von

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